É... eu gostaria de ver para avaliar a utilização do animal (provavelmente mais de 2) durante as filmagens...
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Samuel Fuller entra facilmente no Hall de diretores desprezados no mundo cinematográfico. Em suas mãos, temas rotineiros ganham ótimos contornos dramáticos enquanto ideias triviais se transformam em virtudes.
Martin Scorsese falou que o cinema de Fuller é aquele que entra sorrateiramente pela “porta dos fundos” através de filmes que desenrolam-se convulsivamente e violentamente, tal como o cotidiano da vida, composto por emoções genuínas. Não à toa, que Sam foi intitulado de “contrabandista do cinema”, já que dentro dos seus melodramas tradicionais, encontrava-se um vespeiro subversivo repleto de temas polêmicos, e que transformava o cinema em um campo de batalha para discutir o embate ético e moral das questões hipócritas da sociedade americana, como bem visto nas suas obras-primas Paixões que Alucinam (1963) e O Beijo Amargo (1964).
Na filosofia “fulleriana”, seus filmes são pura emoção: amor, ódio, violência e morte. A ação está sempre a serviço do campo estético – de enquadramentos e movimentos refinados – e narrativo, de narrar através das imagens, os exageros da vida e expor a ferida ao público, para tirá-lo da zona de conforto e permitir que seus filmes, dialogassem diretamente com os sentidos do espectador.
Cão Branco (White Dog, 1982) é um excelente exemplo disso. Foi o último filme do cineasta em solo americano e se tornou um filme maldito para ele, que viu a Paramount, dona dos direitos, sequer lançá-lo no cinema depois que circularam “boatos” de bastidores que a obra era de cunho racista e incitaria a violência racial nos EUA. Fuller ficou amargurado pelo filhote ficar retido na prateleira do estúdio, sem que ninguém mais o visse – na terra de Trump, o filme estreou “só” 10 anos depois da morte do diretor, em casas de arte.
O fato é que essa desilusão, é o seu canto de cisnes cinematográfico, uma espécie de “Jaws” sob quatro patas realizado no final da sua carreira. De filme maldito na época, é possível enxergar Cão Branco como uma poderosa obra anti-racista, que mostra o prenconceito com uma profundidade fascinante, expondo essa crença irracional na metáfora de um cachorro condicionado a atacar negros. Um filme a cara do seu insinuante cineasta: provocador, que revela a estupidez e irracionalidade do racismo na nossa sociedade.
Na história, a atriz Julie (Kristy McNichol, papel imaginado na época pelo diretor a uma jovem Jodie Foster) atropela um pastor alemão branco. À medida que cuida dele, ela se afeiçoa ao animal, até o momento em que descobre que ele foi condicionado a atacar indivíduos negros – inspirado nos ‘cães brancos’ da África do Sul, daí o título original do filme, White Dog.
Desesperada, a garota procura ajuda de especialistas em adestramento como última tentativa de salvar seu “urso polar”. E, aí entra a figura Keys (Paul Winfield, eterno coadjuvante em filmes policiais e ótimo no papel) e Carruthers (o veterano Burl Ives). O primeiro é um treinador de animais, negro por natureza, que assume a incumbência de tentar reeducar o animal.
A partir desse ponto de partida, Fuller realiza uma investigação fascinante sobre a intolerância racial, onde a real intenção não é condenar a ação do animal e sim eliminar o racismo que ele adquiriu do seu dono – o texto é genial ao indicar que assim como a irracionalidade do animal, o racismo e a violência seguem o mesmo caminho. Há boas reflexões por parte do roteiro assinado pelo diretor e o ainda jovem Curtis Hanson (diretor de Los Angeles – Cidade Proibida, falecido ano passado) de dissecar se o racismo que é aprendido, pode ser recondicionado – nossas crenças já estão presentes quando nascemos ou somos moldados pela sociedade? O preconceito deve ser punido ou podemos curá-lo? A razão pode extirpar o racismo? São várias provocações que o filme lança na cabeça do público.
É o olhar complexo sociológico e psicológico fascinante de Fuller sobre a doença do ódio, uma metáfora reveladora, que a maldade humana ainda se faz ainda presente na nossa sociedade atual por meio da segregação racial, de inferiorizar o outro pela sua cor da pele “Quem o tornou doente, o tornou doente para sempre” diz Keys para Julie em certo momento do filme e isso é bem a cara da nossa realidade quando entramos nas redes sociais.
Essa batalha sobre a natureza do ódio é encenada em uma sequência memorável: o ataque do cão a um negro no interior de uma igreja. É uma cena perturbadora e forte, porque Fuller, logo após o ataque, direciona a câmera a subir lentamente para mostrar a figura de um santo como testemunha inerte do ato, a representação que a violência, além de física, é também espiritual por acontecer dentro do recinto sagrado. É a mise-en-scène Fulleriana, de que o cinema serve de encenação para as batalhas da vida.
Não falta ao longa, o formalismo visual característico do cineasta: enquadramentos milimétricos, os planos e ângulos incomuns, a câmera ao nível do chão, closes nos rostos dos atores e do cão que ajudam a intensificar o impacto emocional no espectador. É interessante como ele transforma Cão Branco em um thriller ambíguo que transita entre o suspense atmosférico, o horror brutal e o western. Deste último, ele apresenta o duelo “westerniano” visual entre Keys e o cão, com os planos típicos do gênero como os closes nos olhos e pés dos personagens, unindo a forma cinematográfica ao seu dinamismo técnico apurado.
Este elemento ganha ainda fortes contornos místicos na magistral trilha sonora de Ennio Morricone (outro artista do western) que minimilista e nervosa, intimida toda vez que a fera ataca; e na rica fotografia de luz e sombras, branco e vermelho de Bruce Surtees – responsável pela estética de vários westerns de Clint Eastwood – que personifica a ambiguidade e os contrastes constante da obra. Por fim, deve-se valorizar a ótima montagem, que faz o cão oscilar entre a irracionalidade pura e a doce figura de melhor amigo do homem.
Isso não impede o longa metragem de ter seus “probleminhas”: a atuação de Kristy McNichol é esforçada, mas pouco convicente e há vários fatos que ficam sem explicação, como o namorado da protagonista que some de uma hora para outra da história e a falta de profundidade emocional por parte do texto em trabalhar as consequências concretas dos ataques do cão às pessoas.
São entraves pequenos para atrapalhar essa aula de cinema sobre o racismo. Se mesmo ao final do filme, você tiver alguma dúvida sobre isso, lembre-se de uma cena particular no ato final: o uso de um plano circular (travelling) que se movimenta entre dois personagens abraçados. Nele, Fuller revela o quanto o racismo está incrustrado no interior da alma, a corroendo e por isso é difícil de ser combatido. Em apenas um movimento de câmera, o diretor comprova sua competência para resumir sua discussão. É coisa de gênio. O fato é que dentro da sua simples história animal, Cão Branco é um ótimo manifesto antirracial, a despedida por cima de um mestre em solo americano. Mais do que domar uma fera irracional personificada na figura de um cão, o longa mostra a importância da humanização de nossas crenças e valores. Sem dúvida, uma obra atemporal que dialoga muito bem com o mundo de hoje.
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Samuel Fuller entra facilmente no Hall de diretores desprezados no mundo cinematográfico. Em suas mãos, temas rotineiros ganham ótimos contornos dramáticos enquanto ideias triviais se transformam em virtudes.
Martin Scorsese falou que o cinema de Fuller é aquele que entra sorrateiramente pela “porta dos fundos” através de filmes que desenrolam-se convulsivamente e violentamente, tal como o cotidiano da vida, composto por emoções genuínas. Não à toa, que Sam foi intitulado de “contrabandista do cinema”, já que dentro dos seus melodramas tradicionais, encontrava-se um vespeiro subversivo repleto de temas polêmicos, e que transformava o cinema em um campo de batalha para discutir o embate ético e moral das questões hipócritas da sociedade americana, como bem visto nas suas obras-primas Paixões que Alucinam (1963) e O Beijo Amargo (1964).
Na filosofia “fulleriana”, seus filmes são pura emoção: amor, ódio, violência e morte. A ação está sempre a serviço do campo estético – de enquadramentos e movimentos refinados – e narrativo, de narrar através das imagens, os exageros da vida e expor a ferida ao público, para tirá-lo da zona de conforto e permitir que seus filmes, dialogassem diretamente com os sentidos do espectador.
Cão Branco (White Dog, 1982) é um excelente exemplo disso. Foi o último filme do cineasta em solo americano e se tornou um filme maldito para ele, que viu a Paramount, dona dos direitos, sequer lançá-lo no cinema depois que circularam “boatos” de bastidores que a obra era de cunho racista e incitaria a violência racial nos EUA. Fuller ficou amargurado pelo filhote ficar retido na prateleira do estúdio, sem que ninguém mais o visse – na terra de Trump, o filme estreou “só” 10 anos depois da morte do diretor, em casas de arte.
O fato é que essa desilusão, é o seu canto de cisnes cinematográfico, uma espécie de “Jaws” sob quatro patas realizado no final da sua carreira. De filme maldito na época, é possível enxergar Cão Branco como uma poderosa obra anti-racista, que mostra o prenconceito com uma profundidade fascinante, expondo essa crença irracional na metáfora de um cachorro condicionado a atacar negros. Um filme a cara do seu insinuante cineasta: provocador, que revela a estupidez e irracionalidade do racismo na nossa sociedade.
Na história, a atriz Julie (Kristy McNichol, papel imaginado na época pelo diretor a uma jovem Jodie Foster) atropela um pastor alemão branco. À medida que cuida dele, ela se afeiçoa ao animal, até o momento em que descobre que ele foi condicionado a atacar indivíduos negros – inspirado nos ‘cães brancos’ da África do Sul, daí o título original do filme, White Dog.
Desesperada, a garota procura ajuda de especialistas em adestramento como última tentativa de salvar seu “urso polar”. E, aí entra a figura Keys (Paul Winfield, eterno coadjuvante em filmes policiais e ótimo no papel) e Carruthers (o veterano Burl Ives). O primeiro é um treinador de animais, negro por natureza, que assume a incumbência de tentar reeducar o animal.
A partir desse ponto de partida, Fuller realiza uma investigação fascinante sobre a intolerância racial, onde a real intenção não é condenar a ação do animal e sim eliminar o racismo que ele adquiriu do seu dono – o texto é genial ao indicar que assim como a irracionalidade do animal, o racismo e a violência seguem o mesmo caminho. Há boas reflexões por parte do roteiro assinado pelo diretor e o ainda jovem Curtis Hanson (diretor de Los Angeles – Cidade Proibida, falecido ano passado) de dissecar se o racismo que é aprendido, pode ser recondicionado – nossas crenças já estão presentes quando nascemos ou somos moldados pela sociedade? O preconceito deve ser punido ou podemos curá-lo? A razão pode extirpar o racismo? São várias provocações que o filme lança na cabeça do público.
É o olhar complexo sociológico e psicológico fascinante de Fuller sobre a doença do ódio, uma metáfora reveladora, que a maldade humana ainda se faz ainda presente na nossa sociedade atual por meio da segregação racial, de inferiorizar o outro pela sua cor da pele “Quem o tornou doente, o tornou doente para sempre” diz Keys para Julie em certo momento do filme e isso é bem a cara da nossa realidade quando entramos nas redes sociais.
Essa batalha sobre a natureza do ódio é encenada em uma sequência memorável: o ataque do cão a um negro no interior de uma igreja. É uma cena perturbadora e forte, porque Fuller, logo após o ataque, direciona a câmera a subir lentamente para mostrar a figura de um santo como testemunha inerte do ato, a representação que a violência, além de física, é também espiritual por acontecer dentro do recinto sagrado. É a mise-en-scène Fulleriana, de que o cinema serve de encenação para as batalhas da vida.
Não falta ao longa, o formalismo visual característico do cineasta: enquadramentos milimétricos, os planos e ângulos incomuns, a câmera ao nível do chão, closes nos rostos dos atores e do cão que ajudam a intensificar o impacto emocional no espectador. É interessante como ele transforma Cão Branco em um thriller ambíguo que transita entre o suspense atmosférico, o horror brutal e o western. Deste último, ele apresenta o duelo “westerniano” visual entre Keys e o cão, com os planos típicos do gênero como os closes nos olhos e pés dos personagens, unindo a forma cinematográfica ao seu dinamismo técnico apurado.
Este elemento ganha ainda fortes contornos místicos na magistral trilha sonora de Ennio Morricone (outro artista do western) que minimilista e nervosa, intimida toda vez que a fera ataca; e na rica fotografia de luz e sombras, branco e vermelho de Bruce Surtees – responsável pela estética de vários westerns de Clint Eastwood – que personifica a ambiguidade e os contrastes constante da obra. Por fim, deve-se valorizar a ótima montagem, que faz o cão oscilar entre a irracionalidade pura e a doce figura de melhor amigo do homem.
Isso não impede o longa metragem de ter seus “probleminhas”: a atuação de Kristy McNichol é esforçada, mas pouco convicente e há vários fatos que ficam sem explicação, como o namorado da protagonista que some de uma hora para outra da história e a falta de profundidade emocional por parte do texto em trabalhar as consequências concretas dos ataques do cão às pessoas.
São entraves pequenos para atrapalhar essa aula de cinema sobre o racismo. Se mesmo ao final do filme, você tiver alguma dúvida sobre isso, lembre-se de uma cena particular no ato final: o uso de um plano circular (travelling) que se movimenta entre dois personagens abraçados. Nele, Fuller revela o quanto o racismo está incrustrado no interior da alma, a corroendo e por isso é difícil de ser combatido. Em apenas um movimento de câmera, o diretor comprova sua competência para resumir sua discussão. É coisa de gênio. O fato é que dentro da sua simples história animal, Cão Branco é um ótimo manifesto antirracial, a despedida por cima de um mestre em solo americano. Mais do que domar uma fera irracional personificada na figura de um cão, o longa mostra a importância da humanização de nossas crenças e valores. Sem dúvida, uma obra atemporal que dialoga muito bem com o mundo de hoje.
FONTE: cineset
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