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7/30/2018

Conto: O passarinho fugiu, ou melhor, o Edgar se mandou


O PASSARINHO FUGIU, OU MELHOR, O EDGAR SE MANDOU….

É isso aí, gente! Edgar era meu canário da terra….
Desde a manhã, sentia uma certa rebelião entre eles. Pensei: pura cisma, afinal falo todo dia sobre o quando está custando o alpiste.... Qual deles seria capaz de fugir e arriscar o “pão nosso de cada dia”? 

Edgar, não sei porque, ultimamente andava injuriado como alguma coisa que abalava sua instabilidade emocional. Todo canário da terra vive assustado ou então batendo suas asas em rebelião aos homens estarem acabando com seu habitat.... 

Aliás, ainda existe Mata Atlântica?

Camilo, o meu belo canário belga, liderava aquela sensação de rebelião. Normalmente muito calmo, preocupadíssimo com sua bela plumagem amarelada que vive limpando, há dois dias não tomava banho, não limpava o bico ficando o tempo todo encostado à gaiola de Marcel (o único chanchão da turma) instigando-o a brigar com Edgar.

Naquele dia, logo após a fuga inesperada de Edgar por entre as palhetas da gaiola de madeira que já havia consertado duas vezes nesta semana, Camilo pôs-se a banhar saltitante e, pela primeira vez, cantou dentro da confortável banheira de vidro (ele não gosta de plástico).

Fiquei pensando o que poderia ter havido entre eles para acontecer este momento que me entristeceu e me preocupou demais, pois, Edgar estava comigo há 8 anos quando demos uma batida (eu e a PM) na feira da Tijuca. Ele estava muito machucado, mas, consegui reabilitá-lo. Pensei: como iria comer, beber água ou se defender dos pardais que vivem em bandos aqui no Morro da Viúva no Flamengo?

Minha cabeça fervilhava de suposições enquanto lavava o pano de chão. Sabe que é nessa hora que descubro minhas maiores verdades? Não sei porquê…. Antigamente era com um certo azulejo do banheiro. Às vezes, ficava tão fora de mim quando ele me respondia o que eu perguntava que era preciso que minha mãe batesse na porta me trazendo à realidade. 

Certa vez, conversando com um grupo de amigos este assunto, qual surpresa tive em saber os diversos pontos que cada um tinha para leva-los à uma introspecção. Angela disse ser a maçaneta da porta do seu quarto de dormir.... Ditinho com uma certa mancha na parede da sua quitinete.... Alice confessou que não podia ver uma garrafa vazia que imediatamente pensava na sua vida e começava uma conversa com a pessoa que vive nela. Engraçado como são  as coisas, não?

Mas, voltando ao pobre Edgar. Naquele mesmo dia, à tardinha, ao sair para o mercado deparei com seu corpinho estirado na calçada. Peguei com todo carinho aquele passarinho que fugiu sem explicação e voltei ao meu prédio para enterrá-lo em uma das jardineiras. Vi S. Antônio, o porteiro da tarde, que depois de ter-lhe contado toda história disse: Sheila, o Edgar foi atropelado, eu vi tudo....

Mas, como foi isto?
- Eu vinha do jornaleiro antes do almoço quando vi algumas pessoas num burburinho comentando a despreocupação daquele passarinho que, calmamente, atravessava a rua driblando os carros. Fiquei olhando, também, e aí veio o ônibus que o assustou. O bichinho em vez de continuar andando, resolveu voar.... foi o azar dele... o brutamonte jogou Edgar lá pra calçada.... eu não sabia que era seu, senão...

Eu já não escutava a voz do S. Antônio que narrou a terrível desgraça. Enterrei o pobrezinho na jardineira das papoulas brancas que estava toda florida... ele merecia.... Esqueci do mercado, da conta no banco, do sapateiro e fiquei ali, sentada na beira do canteiro, olhando lá em baixo os carros passarem. Imaginei a cena um milhão de vezes...

Puro surrealismo... até os pássaros vão na conversa dos outros, fogem para uma liberdade não real, andam pelo asfalto driblando carros e quando pensam em voltar à casa para recomeçar tudo, vem um maldito qualquer e acaba com tudo…. 

Ah, tempo bom aquele que nós podíamos aprender as lições de vida e recomeçar.... Agora, as coisas são como bola de neve, sempre aumentando.... aumentando.... aumentando.... a poluição, a inflação, a destruição.... a fumaça.... a fumaça.... estou sufocando......

Dei por mim com minha mãe tirando minhas mãos da minha própria garganta que apertava sem sentir.... Deus meu, enlouqueci!!!!! Esqueci do tempo novamente nas mais de quatro horas que ficara ali sentada divagando sobre o mundo que vai se acabar pelo saquear humano das fontes de sobrevivência....

Subi no elevador com minha mãe tentando me consolar pela morte de Edgar, o canário da terra que morreu atropelado por um ônibus!!!!! 
Ao chegar no apartamento fui direto falar com Lili, a comedida pintagol que me falaram que era macho. Ela, entre pios, deu-me a entender que fora, realmente, Camilo o incitante do caso. Olhei o belga que, entediado, assistia as acusações de Lili. Decidi não pensar mais no caso quando percebi Camilo dizendo: - vai na conversa quem quer.....

Tadeu, o velho coleiro sem uma das patas, que era o xodó do meu filho, encerrou  com um belo trinado, a tentativa de explicar meu mundo de sonhos.


Por Sheila Moura - 1987

2 comentários:

  1. Muito lindo! Muito triste...

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  2. Nossa... eu achei tão profundo! Lindo, triste e reflexivo. Vou compartilhar no meu Face e guardar em minhas pastas.

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